‘O Filho do Brasil’, para entender o novo presidente

Desde que não seja para puxar o saco. Essa foi a condição imposta por Lula quando sua ex-assessora de imprensa, Denise Paraná, se propôs a escrever sua biografia, com base em depoimentos dele e de seus seis irmãos vivos.

 

Lula queria algo “científico”, que ajudasse não só os leitores, mas ele próprio, a compreender como o menino pobre de Vargem Comprida, que dividia com o gado a água barrenta do sertão, tornara-se um líder político importante.

O Filho do Brasil, publicado em 1996 e agora relançado pela Editora Fundação Perseu Abramo, foi a tese de doutorado de Denise, em História, na Universidade de São Paulo. Seu método é a história oral, pelo qual os personagens fazem livremente o seu relato. À nova edição, Denise acrescentou entrevistas que fizera em 1993 e 1994 com a mulher de Lula, Marisa, e seu melhor amigo da juventude, Jacinto Ribeiro dos Santos, o Lambari, que tinham ficado de fora.

Em sua crueza e despojamento, os depoimentos desenham um retrato vivo não só de Lula, mas de toda uma geração de nordestinos que migraram para o Sudeste e lutaram para assimilar as transformações que a mudança promoveu em suas vidas. O linguajar recheado de palavrões e a franqueza do relato podem chocar o leitor, em contraste com a majestade do cargo que hoje ocupa Lula. Mas essa crueza confere veracidade ao relato.

“A primeira coisa que eu lembro, toda vez que me perguntam da minha infância, é exatamente o fato de eu não ter tido infância”, começa Lula, antes de descrever a vida de um menino pobre no sertão nordestino, onde viveu até os sete anos. Com essa idade, foi com a mãe e os irmãos para Santos, para onde seu pai tinha vindo, com outra mulher, pouco antes de ele nascer. Em meio aos deslumbramentos da “civilização”, o menino Lula conviveu com um pai despótico e violento, do qual sua mãe acabou se separando, num dos muitos episódios dramáticos de sua vida.

O pai, Aristides, havia encarregado Lula, de 8 anos, e seu irmão mais velho, José (o Frei Chico), de 11, de tomar conta de uma barca que tinha no Rio Caraú, em Santos. Uma chuva muito forte fez os meninos recuarem. E a barca foi roubada. José levou uma surra de mangueira do pai. Urinou no uniforme da escola, de tanto apanhar. Quando Aristides foi para cima de Lula, a mãe o impediu, mas levou uma mangueirada. Dona Lindu, que não admitia apanhar do marido, foi embora com os filhos.

A mãe de Lula se separou de seu pai por causa dele. E para proteger o filho da ferocidade do pai. O conteúdo freudiano desse episódio não escapa a Denise Paraná, que dedica o último capítulo do livro a sugestões de interpretação do perfil psicológico de Lula. Denise o faz com cuidado, mas não resiste à tentação de colocar Lula no divã, montando habilmente o seu quebra-cabeças emocional.

Nesse retrato, ela reconhece o papel central de Dona Lindu. Vê em Lula a coragem quase temerária da mãe, que partiu com os filhos pequenos para um destino desconhecido, em busca de um marido que já tinha montado uma segunda casa em Santos; e de ir embora de casa pela segunda vez, largando o marido para ir morar num barraco de pau-a-pique.

Denise também vê em Lula o estoicismo e a disciplina da mãe analfabeta, que criou sete filhos sozinha, sem recursos, mas lhes deu dignidade: nenhum se tornou ladrão ou prostituta, assinalam eles próprios. Os rapazes foram operários e as moças, domésticas.

O terceiro traço marcante em Lula herdado da mãe é o espírito gregário. A casa de Dona Lindu estava sempre cheia de parentes e amigos, que ela abrigava com grande satisfação.

Para entender o novo presidente, O Filho do Brasil é leitura única e indispensável.


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