Patética reeleição de Maduro agrava crise da Venezuela

Há um desafio sem precedentes para os vizinhos e para os parceiros comerciais da Venezuela. Como antecipar a saída de um Déspota?

Maduro celebra: Estados Unidos, União Europeia e países vizinhos não reconhecem o resultado | Reuters

O espetáculo patético da reeleição de Nicolás Maduro no domingo 20 serviu para lembrar o Brasil e outros vizinhos da presença na região de um narco-Estado falido com 31 milhões de famintos. Com os chavistas solidamente apoiados pelos militares, que são os que mais se beneficiam da tragédia humanitária que assola o país dono das maiores reservas de petróleo do planeta, está claro que os venezuelanos não conseguirão resolver esse problema sozinhos: algum tipo de intervenção será necessário.

De acordo com os resultados apresentados pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE), controlado pelos chavistas, Maduro teria derrotado o principal candidato da oposição, Henri Falcón, por 6,2 milhões de votos (68%) a 1,9 milhão (21%).

O CNE ainda anunciou um comparecimento de 48%, quando sondagens independentes de boca-de-urna — e a sensação visual nas seções eleitorais — indicam que menos de 20% dos venezuelanos votaram, mesmo com Maduro prometendo “um prêmio” para quem levasse o seu cartão da Pátria, por meio do qual 70% da população se alimenta com uma humilhante cesta-básica.

Pesquisa realizada pelo instituto independente Datanálisis indicava que 28% dos eleitores escolheriam Falcón, 17%, Maduro, e outros 17%, o pastor protestante Javier Bertucci, que atraía multidões a seus comícios distribuindo comida. Pelo CNE, Bertucci teria tido 1 milhão de votos (11%). Como já havia anunciado de antemão, o Grupo de Lima, que reúne 13 países latino-americanos (incluindo o Brasil) e mais o Canadá, não reconheceu o resultado, da mesma maneira que Estados Unidos e União Europeia.

O próprio bom senso indica que, a menos que os venezuelanos sofram de uma epidemia de masoquismo, esse governo não poderia ganhar uma eleição. Com uma inflação de 95% ao mês, e um salário mínimo de 45 reais, somado a um bônus de alimentação de 120, que não dá para comprar um quilo de queijo fatiado (130 reais, quando se tem a sorte de encontrá-lo nas gôndolas semi-vazias), 74% dos venezuelanos perderam ao menos 8,7 quilos involuntariamente só em 2016. A Venezuela se tornou um macabro spa a céu aberto, cujo “dono”, o presidente Maduro, ostenta uma barriga crescente — a grande metáfora de como o regime suga a riqueza do país.

A questão, agora, é: quanto tempo esse regime ainda dura, e quão sangrenta ou abrupta será a sua queda. O novo mandato de Maduro seria em tese de seis anos — e só começa em janeiro do ano que vem, mas o regime antecipou as eleições de dezembro para maio porque sua única certeza é a de que a situação econômica no país só vai piorar. Mas ninguém acredita que o regime sobreviva até lá. Por uma razão simples: em breve não haverá mais dinheiro para importar comida e, depois de quase duas décadas de guerra do governo com o setor privado, a produção local é insignificante.

Nominalmente, as reservas da Venezuela somam 10 bilhões de dólares. Mas, segundo Diego Moya-Ocampos, analista de Venezuela da consultoria IHS Markit, de Londres, dois terços desse montante estão em barras de ouro e, delas, dois terços foram dados em operações de swap como garantia colateral a empréstimos. “Líquido, eles têm menos de um terço desses 10 bilhões”, assegurou Moya-Ocampos a EXAME.

A Argentina recorreu ao Fundo Monetário Internacional este mês quando suas reservas bateram em 60 bilhões de dólares. O Brasil tem 380 bilhões. A penúria é resultado, principalmente, da queda do preço e também da produção de petróleo, que representa 25% do PIB, 50% da receita tributária e 97% do ingresso de divisas. Quando Chávez chegou ao poder, em fevereiro de 1999, a Venezuela produzia 3,1 milhões de barris de petróleo por dia. Quando Maduro assumiu, em abril de 2013, a produção havia caído para 2,3 milhões. No mês passado, foi apenas 1,4 milhão. “Se Maduro continuar no poder, a produção cairá para abaixo de 1 milhão”, prevê o consultor.

Roraima: a explosão migratória levará à ação de países vizinhos? | Mauro Pimentel/ AFP Photo

Uma greve contra o governo realizada pelos funcionários da PDVSA, a estatal do petróleo, entre dezembro de 2002 e janeiro de 2003, levou o então presidente Chávez, que se recuperava de uma tentativa de golpe desfechado em abril, a demitir seus diretores, gerentes e engenheiros, colocando no seu lugar militantes chavistas que entendem de petróleo tanto quanto os chavistas entendem de democracia.

A PDVSA foi sucateada não só pela falta de know-how mas também pela ingerência política. No auge do petróleo caro, Chávez criou em 2005 a Petrocaribe, que bombeou petróleo para os regimes que o apoiavam, e outros que ele queria comprar, como Cuba, Nicarágua e Honduras, desviando recursos que deveriam ser investidos na modernização da PDVSA.

Agora, a pá de cal: as multinacionais do petróleo que sofreram prejuízos com as nacionalizações promovidas por Chávez a partir de 2007 têm ganhado na Justiça ações de indenização. Só naquele ano, o governo confiscou o controle acionário de quatro projetos de exploração no Cinturão do Rio Orinoco no valor total de 30 bilhões de dólares.

A americana Exxon recebeu 908 milhões de dólares, a francesa Total e a norueguesa Statoil, 1 bilhão e a americana Williams, 420 milhões. A também americana ConocoPhillips, que tem 2 bilhões de dólares a receber, está desde o mês passado confiscando ativos da PDVSA nas ilhas caribenhas de Aruba e Curaçao. Refinarias, depósitos bancários e carregamentos de petróleo estão indo para as mãos de credores, não só por causa das estatizações, mas também por dívidas não pagas. É a dilapidação final da PDVSA.

Mas a história não acaba aí. O governo americano estuda sanções contra o setor de petróleo venezuelano, como castigo pela violação dos direitos humanos. As medidas podem incluir o corte na compra de petróleo, na venda de insumos, como diluentes, ou nas transações em dólares por parte da PDVSA. A Venezuela exporta, em média, 430 mil barris de petróleo por dia para os EUA — ante 1 milhão, no passado. Em um ano, a queda foi de 29%. O restante vai para a Rússia e a China. No caso da China, dos 500 mil barris diários, 355 mil são destinados ao pagamento de dívidas. O resto, os chineses pagam em dinheiro, o que significa um cordão umbilical e transforma a Venezuela, com as devidas diferenças, na Coreia do Norte dos trópicos.

De acordo com Moya-Ocampos, o que pode atrasar as sanções americanas é o receio do impacto sobre o preço da gasolina, e de um eventual efeito negativo, para os republicanos, sobre as eleições de novembro para a Câmara dos Deputados e um terço do Senado. Segundo cálculos, o corte do petróleo venezuelano aumentaria o galão da gasolina entre 25 e 30 cents, ou 10 a 15 por cento.  A Venezuela fornece 4% de todo o petróleo importado pelos EUA.

“O país vai direto para um colapso econômico, e aí o regime vai cair”, prevê Carlos Romero, cientista político da Universidade Central da Venezuela. “Existe a possibilidade de uma ruptura da instituição militar, de uma invasão externa ou de uma derrubada de Maduro, mas a crise econômica é o que há de mais iminente.”

À pergunta sobre se essa queda ocorreria com o povo faminto nas ruas, os chavistas fugindo do país e a oposição formando um governo interino até novas eleições, Romero respondeu a EXAME: “Sim, com a ruptura da coalizão  dominante e a atuação militar. Não se chegou ainda a esse ponto, mas não se pode descartar”.

Para Anabella Abadi, do ODH Grupo Consultor, de Caracas, “o governo tentará fazer o possível para manter a distribuição, ainda que de maneira irregular e insuficiente, das cestas-básicas, que se tornaram um importante mecanismo de coerção sócio-política”. A distribuição é feita por militantes chavistas, que negam comida a quem não os apoia.

Tanto assim que muitos oposicionistas acham que as sanções apenas aumentariam o controle do regime sobre a população, que depende dele para comer. “E, até agora, o governo tem preferido atrasar os pagamentos da dívida externa para poder usar os poucos recursos disponíveis em moeda forte para administrar o fornecimento”, acrescentou Abadi a EXAME.

A oposição exige nova eleição presidencial, justa e transparente, no fim do ano, conforme prevê a Constituição. Uma das condições seria seus dirigentes  poderem participar: eles estão cassados, presos ou foragidos. É óbvio que isso não vai acontecer.

Depois de mais de 160 mortes e milhares de detenções no ano passado, os venezuelanos não têm mais saído às ruas.  “O povo está desmoralizado, desmobilizado, desorganizado, atemorizado”, descreve Moya-Ocampos. “Em vez de ir para as ruas protestar contra o governo, virar heróis e arruinar a vida de suas famílias sendo mortos ou presos, os pais de família e os jovens preferem ir embora do país e mandar remessas de lá para os parentes que ficaram.”

Os comandantes militares enriqueceram controlando as atividades mais lucrativas, como importações e distribuição de alimentos e de outros produtos e contrabando de gasolina.

Até janeiro, havia três cotações para o dólar: uma para comércio exterior, de 10 bolívares, outra oficial, de 3.345, e o paralelo, que estava em 80 mil bolívares. Os militares ganharam fortunas importando com a taxa de câmbio comercial e vendendo pela oficial ou mesmo no paralelo. A comercial e a oficial foram unificadas, mas os lucros ainda são grandes. A gasolina custa menos de 1 cent de dólar por galão na Venezuela. Contrabandeá-la é um dinheiro tão fácil quanto cocaína.

Protesto: a oposição prefere fugir para o exterior a arriscar a vida | Marco Bello/ Reuters

Além de ser um Estado falido, que não consegue suprir a população com serviços básicos, a Venezuela se converteu também em um narco-Estado, diz Moya-Ocampos. Ele aponta para os sucessivos relatórios do Departamento do Tesouro americano, que detalham o envolvimento de algumas das principais autoridades venezuelanas com o narcotráfico. Entre eles estão: o vice-presidente Tareck El Aissami; o número 2 do regime, Diosdado Cabello, um ex-militar que controla as Forças Armadas e o PSUV, o partido do governo; sua mulher, Marleny Josefina Contreras, ministra do Turismo; e seu irmão José David, presidente da Seniat, a Receita Federal venezuelana. Segundo o Departamento do Tesouro, drogas apreendidas com narcotraficantes na Venezuela foram entregues ao bando comandado por Cabello, que as reuniu em um aeródromo do governo venezuelano e “exportou”. “Cabello, assim como o presidente Maduro e outros, dividiram o lucro desses carregamentos de narcóticos”, afirma relatório de fevereiro do ano passado.

Diante dessa situação, “cresce na região a tese de uma ingerência humanitária”, observa Moya-Ocampos. Em princípio, ela se restringiria a pressões internacionais, e eventualmente a sanções econômicas. Entretanto, com o risco de uma explosão imigratória, não se pode descartar a necessidade de intervenção militar. Isso não está no horizonte imediato. Mas muitas coisas na Venezuela já fugiram ao script. Como diz o consultor:“É um desafio sem precedentes para a região, que vai requerer uma solução também sem precedentes”.

Publicado no app EXAME Hoje. Copyright: Grupo Abril. Todos os direitos reservados.

Deixe o seu comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*