Na Coreia do Sul sobram boas intenções, mas o resultado é fraco

Por Lourival Sant’Anna, de Seul

Protesto de sindicatos em Seul: aumentos do salário mínimo e dos impostos das empresas não impulsionaram a economia | Woohae Cho/Getty Images

Moon Jae-in foi eleito em maio de 2017 com a promessa de se tornar o “presidente dos empregos” e criar um “crescimento inclusivo” na Coreia do Sul. Para isso, aumentou o salário mínimo, reduziu a jornada de trabalho e elevou os impostos sobre as grandes empresas. Foi uma aposta em uma visão ideológica segundo a qual as pequenas e médias empresas geram mais empregos e reduzem a desigualdade, e o crescimento deve ser impulsionado pela renda. No mundo real, a J-nomics, apelido da política econômica de Moon Jae-in, em analogia com a Abenomics de Shinzo Abe no Japão, produziu o oposto: mais desemprego e menos crescimento econômico. Eleito em meio à Revolução das Velas, que levou à destituição da ex-presidente Park Geun-hye por corrupção, Moon teve queda no nível de aprovação, de 83%, após a cúpula histórica com o ditador norte-coreano Kim Jong-un em abril de 2018, para os atuais 44%.

De acordo com a pesquisa Gallup, a maioria dos sul-coreanos acha que o governo deve “focar mais o crescimento econômico do que a distribuição de renda”. A confiança dos sul-coreanos em seu tradicional modelo de desenvolvimento tem motivo: a renda per capita no país subiu de 800 dólares (atualizados) após a Guerra da Coreia (1950-53) para cerca de 32.000 hoje. O índice Gini de 0,36 reflete baixa desigualdade social (o índice varia de zero, a igualdade completa, a 1; no Brasil, é 0,62). Mas era de 0,31 na década passada, tendo subido para 0,35 em 2015 e chegado a 0,36 em 2016. Esse aumento da desigualdade, segundo Moon, do Partido Democrático, de centro-esquerda, precisava ser freado.

O presidente foi eleito sob o impacto de uma história que abalou o país: o suicídio do produtor de televisão Lee Han Bit por causa de excesso de trabalho. Lee trabalhava na série de TV Drinking Solo, que falava justamente do estresse de jovens em preparação para um concurso público. Em uma carta, descreveu sua angústia por obrigar os subordinados a trabalhar 20 horas e dormir apenas 2 ou 3 por dia. Durante a campanha, uma jovem funcionária pública morreu em uma repartição num domingo, e Moon tuitou: “Não podemos mais ser uma sociedade em que jornadas excessivas e trabalhar até tarde são um dado”. De acordo com a polícia, mais de 500 dos cerca de 14.000 suicídios anuais são causados por estresse do trabalho.

O governo Moon patrocinou uma lei que estabelece um limite de 52 horas semanais de trabalho. Antes de sua aprovação, a Coreia do Sul era o terceiro país com o maior número de horas trabalhadas por ano da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, que reúne 36 países). Em 2017, os sul-coreanos trabalharam 2 024 horas, em média, perdendo apenas para os costa-riquenhos, com 2.121, e os mexicanos, com 2 258. Os alemães foram os que menos trabalharam no grupo: 1.356 horas. No Brasil, que participa como ouvinte da OCDE, o último dado é de 2014: 1.763 horas.

Embora pese sobre o custo das empresas, o teto para as horas trabalhadas não foi o que causou mais reação. O problema foi que essa medida veio acompanhada da elevação do salário mínimo e dos impostos. Em 2018 o mínimo aumentou 16,4%; e em 2019 mais 10,9%. Isso com uma inflação anual de 1,5%. No primeiro ano do governo Moon, em 2017, a presidente Park já havia aprovado na Assembleia Nacional um aumento de 7,3%. O salário mínimo atual é de 8.351 wons, ou 6,3 dólares por hora. Não parece tão alto quando comparado ao do Japão, por exemplo: 7,9 dólares em Tóquio, o maior do país. Na China, no entanto, concorrente mais direto da Coreia, ele gira em torno de 2 dólares por hora em Xangai. Mas o mais importante para os empresários sul-coreanos é o incremento brutal dos últimos três anos.

Além disso, já no primeiro ano de mandato, Moon aprovou na Assembleia a elevação e a criação de novas alíquotas do imposto de renda para pessoa jurídica. A alíquota mais alta, para empresas com faturamento acima de 178 milhões de dólares, subiu de 22% para 25%. Foram criadas quatro alíquotas, tornando o sistema tributário sul-coreano um dos mais complexos da OCDE. O aumento atingiu em cheio os chaebols — conglomerados que cresceram nas últimas décadas com incentivos do Estado, donos de marcas como Samsung, LG, Hyundai e Kia. Foi o primeiro aumento de carga tributária para eles desde 1990.

O novo regime ainda reduziu os incentivos fiscais para investimentos em pesquisa e desenvolvimento das grandes empresas, das faixas de 1% a 3% para 0% a 2%. Para as empresas menores, os incentivos continuaram inalterados: 25% para as pequenas e de 8% a 15% para as médias. Os chaebols são o principal alicerce do milagre econômico sul-coreano, mas sua reputação andava em baixa na época da eleição, por causa do escândalo de pagamento de propina da maior empresa do país, a Samsung, a uma assessora da presidente Park (o vice-presidente e herdeiro da Samsung, Jay Y. Lee, chegou a ser sentenciado a cinco anos de prisão, mas foi libertado em 2018, quando sua condenação por suborno foi suspensa). Isso ajudou a bancar a aposta num novo modelo. “Nossa qualidade de vida tem deteriorado, e a disparidade de renda está se ampliando”, justifica Yoon Jong-won, principal assessor econômico da Presidência. “Esse não é o caminho que deveríamos continuar seguindo.” O governo prometeu investir o dinheiro do aumento de impostos em programas de estímulo à inovação. Sua expectativa era que, trabalhando menos e ganhando mais, os sul-coreanos consumissem mais.

Não foi o que ocorreu. Em 2018, a economia sul-coreana cresceu 2,7% — ante os 3% de 2017, chegando ao índice mais baixo desde 2012. Para nós, brasileiros, esse índice seria motivo de festa, mas os coreanos acostumaram-se a taxas bem  maiores (veja quadro). Temem repetir o caminho do Japão, cuja economia na década de 90 apontava para se tornar a maior do mundo e estagnou. E a situação vem piorando: o PIB encolheu 0,4% no primeiro trimestre, o pior desempenho desde a crise financeira mundial de 2008-2009. Voltou a crescer no segundo trimestre, 1,1%, mas como resultado de gastos do governo (o setor privado encolheu 0,2% no período). O desemprego aumentou de 3,8%, no ano passado, para 4%, pior índice para o mês de maio desde o ano 2000 (embora baixíssimo numa comparação internacional).

O governo prevê uma retomada do crescimento no segundo semestre e atribui a desaceleração à queda nas exportações, que diminuíram 9,4% em maio e 13,5% em junho. Essa queda é resultado da guerra tarifária entre os Estados Unidos e a China — os produtos chineses incluem componentes sul-coreanos. Se os sul-coreanos consumirem mais, raciocina a equipe econômica, o país se tornará menos dependente das exportações, que representam 43% do PIB. Na China, essa fatia alcança 20%.

Ninguém duvida que a queda no comércio teve impacto sobre o crescimento. “A China e os Estados Unidos são nossos mais importantes parceiros comerciais. Principalmente a China, nosso maior importador”, afirma Sungjin Kang, diretor do Instituto de Desenvolvimento Sustentável da Universidade da Coreia. A situação coloca um dilema para a Coreia do Sul. “O impacto da guerra China-Estados Unidos é horrível”, diz o economista Lee Joon-ho, pesquisador do Korea Small Business Institute (Kosbi). “Temos de ser amigos de ambos. Se tivermos de escolher, serão os Estados Unidos, por causa de nossa aliança histórica, mas o mercado chinês é muito maior como destino de nossas exportações.”

Antes mesmo da guerra comercial, as tensões geopolíticas já vinham atrapalhando o comércio. No governo anterior, de Park, os americanos instalaram em 2016 baterias de mísseis Thaad (de defesa em altas altitudes) na Coreia do Sul. O arsenal visava ostensivamente à Coreia do Norte, mas, na prática, todos sabiam que também funciona como contenção da China, que reagiu afirmando que ele servia para “espioná-la”. Os chineses passaram a boicotar extraoficialmente os produtos sul-coreanos e cortaram os pacotes turísticos para o país. Em novembro de 2017, Moon firmou um compromisso com o presidente chinês, Xi Jinping, de reduzir a presença dos Thaad. As exportações e os pacotes, no entanto, não voltaram na intensidade de antes, até porque a indústria chinesa é cada vez mais competitiva. Antes da guerra comercial, 27% das exportações sul-coreanas iam para a China. Essa parcela caiu para 23%. Das exportações à China, 70% são partes e componentes, segundo os cálculos de Joon-Kyung Kim, professor na Escola de Políticas Públicas e Gestão do Instituto de Desenvolvimento Coreano. As exportações diminuem há sete meses. “Já há capacidade ociosa na indústria”, diz.

Mas não dá para culpar só o cenário externo. “As medidas do governo atrapalharam bastante”, diz o professor Sungjin Kang. “A mudança de políticas levou a uma redução na criação anual de vagas de 300 000 para 200 000; o crescimento econômico caiu, mas não na mesma proporção.” Kang aponta também para os índices de atividade econômica relativamente bons no Japão e nos Estados Unidos: “A Coreia deveria ter ido melhor, porque depende do cenário externo”.

Para Lee, do Kosbi, órgão que é financiado pelo governo e faz recomendações de políticas econômicas para melhorar o ambiente de negócios das empresas menores, “o aumento do salário mínimo foi uma medida infeliz”. Ele analisa que a economia saiu de um período de boom e desacelerou. Muitos analistas aconselharam o presidente a ir mais devagar na reforma. Recentemente, Moon designou como assessores economistas que têm uma visão mais flexível. “Muitas pessoas dizem que as medidas deslocam a ênfase do apoio aos chaebols para as pequenas e médias empresas, mas a realidade não é tão preto no branco”, afirma Lee. Segundo ele, as PMEs têm uma margem de lucro muito pequena, entre 1% e 2%. Por isso, com o aumento do salário mínimo, não têm alternativa a não ser demitir. Daí o aumento do desemprego.

O avanço das tecnologias que substituem a mão de obra não teria um peso nisso? “A perda de vagas por causa do erro de avaliação da política do governo parece ser maior do que pela automação no setor de serviços”, afirma o professor Yong-Gu Suh, reitor da Escola de Negócios Sookmyung, em Seul. Para além da elevação do desemprego, o aumento do salário mínimo agravou a perda de competitividade, segundo o professor Kim, do Instituto de Desenvolvimento Coreano. “Os sindicatos são fortes demais aqui”, diz Kim. “Não são flexíveis. Sua ganância precisa ser contida.” Enquanto ele dizia isso, no centro de Seul, os sindicatos faziam uma manifestação exigindo que o presidente Moon cumprisse a promessa de aumentar o salário mínimo para até 10 000 wons por hora.

Publicado na Revista Exame. Todos os direitos reservados para a Editora Abril.

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