Os reis do trigo

Um dos maiores compradores de alimentos do Brasil, a Rússia tem investido pesadamente para aumentar a produção agropecuária, e aos poucos se torna um concorrente mais forte no mercado internacional

Vladimir Putin, da Rússia, em visita à plantação de trigo: o país teve a maior produção agrícola em 40 anos | Alexei Nikolsky/ Reuters

MOSCOU – No início de dezembro, a Rússia suspendeu a compra de carnes bovina e suína do Brasil alegando ter encontrado o hormônio de crescimento ractopamina. A substância é proibida só na carne bovina. Mas a Rússia, que tem um rigor incomum com as questões sanitárias, não a aceita também na carne de porco. Os produtores brasileiros segregam seus porcos para atender a essa exigência. Mas o Rosselkhoz-nad-zor,– agência sanitária russa, afirmou ter encontrado o hormônio em ambas as carnes. Se antes essas crises comerciais se resolviam de forma relativamente rápida, desta vez a atitude dos russos tem sido diferente: as autoridades não estão demonstrando a menor pressa em voltar a comprar carne do Brasil, apesar de sermos o principal fornecedor tanto de carne suína quanto de bovina. No caso de Santa Catarina, estado que lidera a produção de porcos no Brasil, 40% das vendas de carne suína vão para a Rússia.

A explicação para a mudança de comportamento é o avanço da Rússia como produtora e exportadora de alimentos. Com isso, o Brasil já não é mais visto como um fornecedor, mas como um concorrente. Os russos têm pressionado os brasileiros a comprar mais de seu trigo, de seus pescados e até mesmo de sua carne de excelente qualidade, do boi angus, trazido dos Estados Unidos. Os tempos mudaram. “A motivação russa em superar o impasse comercial com o Brasil é diferente dos tempos em que a dependência das carnes brasileiras era consideravelmente maior e os problemas tinham uma consequência grave sobre o abastecimento do mercado de alimentos”, diz Almir Ribeiro Américo, chefe do escritório da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil) em Moscou. 

 

Na safra deste ano, a Rússia deve se confirmar como um dos maiores produtores de grãos do mundo, junto com China, Estados Unidos, Índia e Brasil. A produção de grãos do ano passado — de 134 milhões de toneladas, das quais 85 milhões são de trigo — bateu o recorde anterior, alcançado ainda na União Soviética em 1978. As exportações de alimentos somaram 21 bilhões de dólares em 2017. As vendas de trigo cresceram 40% em um ano. Com isso, o setor agropecuário ultrapassou o de armamentos como a segunda maior fonte de receitas, atrás apenas de petróleo e gás.

A pecuária russa também tem obtido bons resultados. As exportações de carnes aumentaram 42% no ano passado, chegando a 237 000 toneladas. Antes uma grande compradora do frango brasileiro, a Rússia passou a competir com o Brasil em mercados como os das monarquias árabes do Golfo Pérsico, em especial os Emirados Árabes Unidos. A proximidade geográfica tem ajudado.

A revolução no setor agropecuário russo é resultado de três coisas: um programa governamental, lançado em 1999, com forte investimento estatal, para atingir a segurança alimentar; a desvalorização do rublo, causada pelo preço baixo do petróleo, que diminuiu a entrada de dólares e tornou as importações mais caras e as exportações mais baratas; e o embargo russo à importação de alimentos dos Estados Unidos e da Europa, numa retaliação do governo de Vladimir Putin às sanções impostas ao país depois de sua intervenção na Ucrânia e da anexação da região da Crimeia em 2014. No período entre 2013 e 2020, o governo russo está investindo 1,7 trilhão de rublos (93 bilhões de reais) em apoio aos produtores rurais. A ajuda cresce ano a ano. Para 2018, está prevista uma quantia de 13,2 bilhões de reais. 

A Rússia ainda importa mais alimentos do que exporta, mas o governo quer mudar essa situação. Em seu pronunciamento anual ao Senado, em fevereiro, Putin disse que a balança comercial do setor agrícola precisa se tornar superavitária dentro de quatro anos. Ele citou especificamente carne bovina, laticínios e verduras. Os russos não costumam ignorar as ordens de seu presidente, no poder desde 2000 e reeleito em março para mais um mandato de seis anos.

Espaço para crescer

Para Putin, a autossuficiência alimentar tem um sentido político. Ele mantém uma popularidade de 80% nutrindo nos russos a ideia de que seu país é uma “fortaleza cercada”, ameaçada tanto pelo terrorismo islâmico quanto pelo Ocidente. E ele, claro, seria o único homem capaz de proteger o país. A restituição do status de potência — tanto nuclear quanto alimentar — devolve aos russos o orgulho ferido pelas humilhações da caótica transição do comunismo para o capitalismo nos anos 90.

Logo após a dissolução da União Soviética em dezembro de 1991, o governo do presidente George Bush (pai) enviou toneladas de peças de frango na forma de ajuda humanitária para alimentar os russos famintos. Conhecidas como “coxas do Bush”, elas passaram a simbolizar a submissão ao Ocidente da Rússia, reduzida à condição de país subdesenvolvido. Enviado primeiro como ajuda, o frango americano criou um mercado para o produto na Rússia. Essa situação durou até 2010, quando o governo Putin — na época no cargo de primeiro-ministro —  proibiu a entrada do frango americano, alegando que não satisfazia as novas regras sanitárias locais.
De acordo com Albert Davleev, diretor da consultoria Agrifood Strategies,
de Moscou, a produção de carne de frango na Rússia cresceu de aproximadamente 670000 toneladas em 1997 para mais de 5 milhões
neste ano. “O mesmo tem acontecido com o setor de carne de porco, que mudou drasticamente nos últimos dez anos, seguindo o exemplo da indústria do frango”, afirma Davleev.

Supermercado em Moscou: a Rússia depende cada vez menos da carne brasileira | Andrey Rudakov/ Getty Images

A Rússia, como potência alimentar, passou a jogar tão duro quanto já faz há mais tempo no campo da geopolítica. “A impaciência dos russos para certificar seu trigo para o mercado brasileiro virou um tema prioritário na agenda bilateral e passou a condicionar o comércio de outros produtos, como as carnes”, diz Almir Américo, da Apex-Brasil em Moscou. O brasileiro lembra que, há cerca de uma década, a Rússia importava 1 milhão de toneladas de carnes só do Brasil. Hoje, as importações de todos os países somam 1,1 milhão de toneladas, sendo 380 000 da própria União Econômica Euroasiática, o bloco de antigas repúblicas soviéticas liderado por Moscou. Os russos também estão aumentando consideravelmente a produção de açúcar de beterraba, diminuindo a dependência da importação do açúcar brasileiro. O sucesso da agricultura russa tem afetado significativamente as relações comerciais do país com o Brasil. Desde o início dos anos 2000, o Brasil usufruía de um superávit nas transações com a Rússia. Do final de 2017 para cá, passou a ter um déficit.

O ministro da Agricultura, Blairo Maggi, esteve em Moscou em outubro e ouviu dos russos que eles têm interesse em exportar carne bovina, trigo e pescado para o Brasil. O Miratorg, principal frigorífico da Rússia, que, como as outras grandes empresas, tem forte apoio do governo, considera que exportar carne para o Brasil representaria uma importante referência. 

Além disso, os russos têm perguntado às autoridades brasileiras por que o país compra pescado de Portugal e da Noruega ou trigo da Argentina, e não da Rússia. Enquanto uma resposta convincente não vier, o governo russo não se mostrará muito animado a resolver os problemas sanitários das carnes brasileiras. 

Davleev, da consultoria Agrifood Strategies, observa que a produção de laticínios e de carne bovina tem crescido gradualmente nos últimos anos com a pesada ajuda estatal e que esse programa de longo prazo deverá levar a um aumento do poder de competição. Mas a agroindústria ainda é tímida. “Embora a Rússia seja líder mundial na exportação de trigo, só uma pequena parte é moída e exportada como farinha”, diz o consultor russo. “Mais de 95% dos ovos são vendidos in natura e há poucas indústrias de processamento de carnes. A maior parte é vendida com os ossos e como aves inteiras.”

A logística é outro grande desafio nesse que é o país com o maior território do mundo. A estrutura dos portos não é suficiente para o escoamento. A demografia também joga contra: a população russa está envelhecendo, com uma taxa de natalidade abaixo do nível de reposição e um êxodo do campo para as cidades. Entretanto, segundo Davleev, isso tem sido compensado pela crescente automação — também amparada por recursos governamentais. Além do mais, o espaço para o crescimento do setor na Rússia ainda é amplo: apenas 10% das terras aráveis são usadas, o país tem um dos maiores reservatórios de água do mundo e um clima relativamente moderado nas regiões agrícolas, o que permite produzir grande variedade de alimentos.

Diante desse cenário, o Brasil tenta diversificar a oferta. Graças a um trabalho calculado do governo, os russos descobriram as qualidades e as vantagens competitivas do amendoim brasileiro e triplicaram as importações do Brasil nos últimos três anos. Com isso, o Brasil está substituindo os tradicionais fornecedores asiáticos de amendoim. As exportações de soja do Brasil para a Rússia também estão aumentando, para alimentar a crescente pecuária do país. No entanto, na parte asiática da Rússia, ao longo da fronteira com a China, há uma faixa de terra fértil, na mesma latitude dos grandes produtores de soja americanos. Uma vez explorado esse potencial, ele elevaria a Rússia a um novo patamar de autossuficiência alimentar, com a soma de trigo e de soja. É bom o Brasil se preparar para mais concorrência. 

Publicado em Revista EXAME. Copyright: Grupo Abril. Todos os direitos reservados.

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