Um laboratório chamado Grécia

O governo da Grécia enfrenta mais uma dramática negociação — a terceira —com o Fundo Monetário Internacional e a Comissão Europeia. Seis anos se passaram desde que os gregos pediram socorro à comunidade internacional e se dispuseram a fazer a tarefa de casa financeira, mas a cada tempo que passa o país parece afundar mais. Em junho e julho, a Grécia precisaria desembolsar mais de € 10 bilhões, mas simplesmente não tem de onde tirar esse dinheiro. O país já acumula uma dívida de 177% de seu PIB, e sua economia está estagnada, com um quarto da população desempregada — a maioria há mais de 12 meses. Mas o interessante na Grécia não é o que ela tem de excepcional, e sim de semelhante com o Brasil e outros países; como ela serve de laboratório dos grandes embates que envolvem as políticas econômicas: é com o governo gastando pouco ou muito, cobrando mais ou menos impostos, que se chega a um crescimento sustentável?

Até mesmo entre o FMI e a Comissão Europeia há uma divergência sobre como proceder com a Grécia. O FMI considera que os gregos não têm condições de cumprir as exigências, e os governos europeus deveriam afrouxá-las. Mas a Alemanha e outros países da zona do euro insistem que, se mantiver superávit primário de 3,5% nas próximas décadas, a Grécia conseguirá pagar suas dívidas e andar com as próprias pernas. O FMI, no entanto, recusa-se, sob essas condições, a ajudar os gregos a honrar as próximas parcelas. A resposta das autoridades financeiras europeias — reunidas em Amsterdã com representantes gregos — a esse impasse chega a ser surpreendente: elas propõem que a Grécia gere mais 2% de superávit primário, por meio de novas medidas de austeridade. 

O problema é que os especialistas não vêem onde cortar. “Não há mais gordura”, avalia Gikas Hardouvelis, ministro das Finanças entre junho de 2014 e janeiro do ano passado, e professor de economia da Universidade Piraeus. “Os cortes de gastos chegaram ao osso”, concorda o consultor alemão Jens Bastian, baseado em Atenas, membro da Força Tarefa da Comissão Europeia para a Grécia entre 2011 e 2013. 

Existem ainda cerca de 60 estatais, remanescentes de décadas passadas, que geram prejuízos e vivem de subsídios. Uma delas, por exemplo, tem três usinas produzindo açúcar a custos acima dos preços internacionais. “Não querem tocar nelas, mas fechá-las não trará grandes economias”, diz Hardouvelis. Para o ex-ministro, só cortes nos salários ou nas aposentadorias é que trariam uma poupança substancial. “Mas é politicamente impossível fazer isso. O governo cairia.”

Aumentar impostos é outra saída inviável: a carga tributária atingiu 60% do PIB e muitas pessoas já rasparam suas poupanças para pagar tributos. Clientes sacaram € 500 milhões de suas contas bancárias em fevereiro, com medo da saída do país da zona do euro e de uma desvalorização de seus depósitos. Há uma fuga de empresas e de cérebros. De acordo com uma pesquisa do Conselho da Europa, apenas 16% dos gregos com curso superior que trabalharam fora do país nos últimos três anos voltaram para a Grécia. “Não haveria contribuintes para pagar mais impostos”, atesta o ex-ministro. “Não tenho a solução neste momento. Não se deve insistir em medidas extremas. É preciso deixar a economia crescer primeiro.”

Para Bastian, a ênfase das negociações deveria ser deslocada dos aumentos de impostos e cortes de gastos para os investimentos. O consultor observa que apenas um dos 200 programas de investimentos custeados pelo Fundo Europeu de Investimentos Estratégicos será executado na Grécia. Também conhecido como Programa Juncker, em referência ao presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, o plano destina de € 330 a € 410 bilhões entre 2015 e 2017 para os países membros, com o objetivo de impulsionar a criação de até 1,3 milhão de empregos.

Para Bastian, os credores deveriam cobrar das autoridades gregas por que demoraram tanto para implementar o Programa Juncker. O consultor alemão considera que “essa é potencialmente a história de sucesso de que o país precisa desesperadamente”. Aumentar os impostos, diz ele, “estrangularia uma economia real que mal consegue respirar”. O foco, na visão de Bastian, deveria estar em duas outras questões fiscais. 

A primeira seria a ampliação da base tributária. Segundo o consultor, 55% dos domicílios gregos estão isentos de imposto de renda. O piso de renda anual para a declaração na Grécia, de € 9.500, está bem acima do da Alemanha (€ 7,664) e de muitos outros países da zona do euro. 

O outro tópico é a introdução de créditos tributários para famílias e empresas que paguem seus impostos pontual e integralmente. Bastian diz que uma linha especial de créditos tributários já é aplicada aos bancos gregos, quando usam um mecanismo chamado ativos de impostos deferidos. “Por que os bancos deveriam ser os únicos a se beneficiarem desses créditos?” 

GRÉCIA: em comparação com o primeiro trimestre de 2015, o PIB caiu 1,4%, um décimo a mais do que o estimado em maio
Foto: Alkis Konstantinidis/Reuters

A troika FMI—Comissão Europeia—Banco Central Europeu agora se converteu em quarteto, com a entrada em cena do Mecanismo de Estabilidade Europeia, mas a desconfiança mútua só tem crescido. No dia 1.º de abril, o site Wikileaks publicou a transcrição de uma videoconferência entre os dois principais funcionários do FMI encarregados de supervisionar a situação da Grécia — Poul Thomsen, chefe do Departamento do FMI para a Europa, e Delia Velkouleskou, que dirige a missão do Fundo em Atenas. Na conversa, os funcionários deixam claro seu receio de que a Grécia não consiga mais honrar seus compromissos até julho, caso a União Europeia não flexibilize as exigências. Eles temem que a moratória grega coincida com o referendo na Grã-Bretanha, dia 23 de junho, sobre sua saída ou não da União Europeia, no processo conhecido como “Brexit”.

“Isso vai ser um desastre”, diz Delia, uma economista romena. O dinamarquês Thomsen simula um diálogo imaginário com a chanceler alemã, Angela Merkel, no qual o FMI anunciaria sua saída da troika: “Olhe, Sra. Merkel, enfrente a questão. A senhora tem de pensar o que custa mais. Seguir adiante sem o FMI ou optar pelo alívio da dívida que acreditamos que a Grécia necessita para nos manter a bordo?”

Thomsen continuou: “Não vou aceitar um pacote de medidas pequenas. O que trará tudo isso para o ponto de decisão? No passado, só houve um momento no qual a decisão foi tomada, quando (os gregos) estavam ficando seriamente sem dinheiro e indo para a moratória. Possivelmente é o que vai acontecer de novo. Nesse caso, vai se arrastar até julho, e claramente os europeus não vão querer ter nenhuma discussão um mês antes da Brexit”.

O incidente envenenou o ambiente já ruim entre gregos e credores. Do ponto de vista do FMI, representou a violação da confidencialidade de seus trabalhos no seu escritório em Atenas — que deveria ser protegida pelos anfitriões gregos. O primeiro-ministro Alexis Tsipiras acusou o FMI de tentar “desestabilizar a Europa politicamente”, e fez menção de usar o incidente como pretexto para empurrar as negociações com a barriga e tentar arrancar condições menos severas. A diretora-gerente do Fundo, Christine Lagarde, advertiu que “a Grécia não pode simplesmente ficar enrolando e esperando que as coisas se resolvam”. O Ministério das Finanças informou que, se o FMI suspender sua contribuição, a Alemanha fará o mesmo.

Nos últimos sete anos, a economia grega encolheu 31%. Nesse período, o único ano de crescimento — de apenas 0,7% — ocorreu em 2014 (ver gráfico), exatamente quando Hardouvelis era ministro das Finanças, no governo de Antonis Samaras, economista formado no Amherst College, em Massachusetts, com MBA em Harvard. O Partido Nova Demoracia, de Samaris, que liderava um governo de coalizão desde 2012, perdeu o apoio da Esquerda Democrática e do Pasok, social-democrata, e novas eleições foram realizadas em janeiro de 2015. O partido de esquerda Syriza ficou em primeiro lugar, com 36%, e se aliou aos Gregos Independentes, de direita. Em comum, ambos são contra a política de austeridade fiscal adotada para atender os credores do FMI e da União Europeia. Tsipras, líder do Syriza, é desde então primeiro-ministro. 

Formado na Juventude Comunista e no Synaspismos, um grupo de esquerdistas e ambientalistas dissidente do PC grego, Tsipras lançou-se numa cruzada contra a receita europeia de austeridade: elevação de impostos, cortes nos gastos e redução do setor público. O populista de esquerda convenceu muitos eleitores gregos de que seu grupo formava uma espécie de vanguarda no continente contra o modelo imposto pelo Banco Central Europeu. Sua retórica inflamada empolgou boa parte da população, deprimida com a falta de perspectivas, mesmo depois de cinco anos de sacrifícios. Em um referendo em julho, 61% seguiram Tsipras e rejeitaram um novo pacote de medidas de austeridade. O resultado foi comemorado com manifestações de patriotismo. 

Um mês depois, pateticamente, sem dinheiro para pagar as contas, o primeiro-ministro assinou o acordo com a troika, que previa a renovação do empréstimo de € 85 bilhões, em troca de aumentos de impostos, cortes nos gastos e vendas de estatais — os mesmos termos que ele havia ruidosamente rejeitado antes. Com a assinatura do acordo, a Grécia recebeu um desembolso de €13 bilhões, o que lhe permitiu pagar  uma parcela pendente de € 3,2 bilões ao BCE. A “traição”, no entanto, custou a Tsipras a perda da maioria no Parlamento e a convocação de novas eleições. Vinte e cinco deputados desertaram do Syriza e formaram a Unidade Popular.

Numa amostra do desânimo dos gregos, o comparecimento às urnas foi de apenas 56% — o mais baixo desde o fim da ditadura, em 1974. Resignados com a falta de alternativas, os eleitores deram de novo vitória ao Syriza, com 35% dos votos e 145 deputados no Parlamento de 300. A aliança com os Gregos Independentes, que obtiveram 10 cadeiras, garantiu a maioria e a formação do governo. Tsipras consolidou então sua imagem de governante que não chega a romper com a comunidade internacional nem retirar-se da zona do euro — algo que os gregos não desejam —, mas que ao menos negocia nos termos mais duros possíveis, protegendo a Grécia de mais medidas de austeridade do que o estritamente necessário.

Não é assim que Hardouvelis vê o atual governo, mas como uma perda de oportunidade histórica. “Em 2015, havia uma expectativa de crescimento de 2% a 3%, mas em vez disso houve recessão, por causa da atitude de confronto (com a União Europeia)”, lamenta o ex-ministro das Finanças, que deixou o cargo com a ascensão de Tsipras, em janeiro do ano passado. “A economia estava se estabilizando e crescendo. Os investidores estrangeiros estavam voltando e o país poderia ter avançado.” Naquelas condições, diz ele, para chegar ao superávit de 3,5%, a Grécia precisava economizar apenas € 1 bilhão a mais. “Estava fácil.” Agora, com o mergulho na recessão e a exigência extra de um superávit de 2%, por sobre os 3,5%, é necessário poupar mais de € 8 bilhões, calcula Hardouvelis.

Uma outra forma de avaliar as consequências da resistência grega é observar o que aconteceu com os outros países que também chegaram à beira da moratória mas seguiram o plano definido pela Comissão Europeia. Espanha, Portugal, Irlanda e Chipre conseguiram sair do buraco. Só a Grécia, que com Tsipras decidiu insurgir-se contra o modelo, tem afundado.

“Em 2010, a Grécia decidiu apertar o cinto e pedir mais dinheiro, mas as autoridades gregas não implementaram as reformas estruturais necessárias para aumentar a competitividade econômica, e não acabaram com os privilégios para grupos poderosos”, recorda Stefanie Walker, professora de ciência política da Universidade de Zurique e autora do livro “Crises financeiras e política dos ajustes macroeconômicos”, resultado de um estudo comparativo. “Em vez disso, grupos menos influentes politicamente, como s jovens e os desempregados, foram atingidos mais duramente pelos cortes orçamentários e aumentos de impostos.”

A adoção do euro também não ajudou a Grécia, avalia a pesquisadora. A Polônia, por exemplo, conseguiu sair de sua crise de 2008-2009 sem medidas de austeridade, mas desvalorizando o zloty. Stefanie observa que governantes tentam postergar reformas sérias pelo máximo de tempo possível, com receio das turbulências políticas e ondas de manifestações que as mudanças acarretam. “E quando eles não podem evitar as reformas, normalmente as elaboram de forma a proteger seus próprios eleitores e mirar nos que são menos influentes politicamente.”

Stefanie estudou a Europa do Leste e do Sul. Mas às vezes parece estar falando também da América do Sul.

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