Filha adotiva que Kadafi diz ter morrido está viva

Hana, de véu preto e bata branca (dir.) com Aisha, de véu e roupa pretos (Reprodução: Lourival Sant’Anna)

TRÍPOLI, Líbia – Ao longo de 25 anos, Muamar Kadafi e seus defensores sustentaram a versão de que sua filha adotiva, Hana, com pouco mais de um ano na época, teria sido morta pelo bombardeio americano de 1986 contra o seu quartel-general de Bab al-Azizia, em Trípoli. Não é verdade. O Estado encontrou fotos e documentos e ouviu depoimentos que demonstram que Hana é hoje médica, e que trabalhou até o meio-dia de domingo no Hospital Central de Trípoli, de onde fugiu com o auxílio de seguranças. E a Grã-Bretanha sabia disso pelo menos desde 2007.

Num escritório ao lado da casa de Kadafi, o Estado encontrou um certificado de proficiência em inglês emitido em 2007 pelo Conselho Britânico na Líbia, em nome de “Hana Moammer Gadafi”.Havia também um exame de medicina com a assinatura dela em árabe. Numa foto aparentemente recente, Hana aparece junto com Aisha, única filha biológica de Kadafi. Três fotos 3 x 4 a mostram vestindo avental de médica. Nas prateleiras do escritório, há vários livros de medicina em inglês e cadernos com anotações sobre doenças e procedimentos médicos.

Sapatos e cremes de mulher, fotos, papéis, CDs, uma caixa de DVD do seriado americano Sex and the City e outros objetos pessoais estão espalhados pela sala, mobiliada com dois sofás de tecido creme, escrivaninha e estantes de madeira.

No maior hospital da capital, o Estado esteve no escritório em que Hana, formada há um ano na Universidade de Trípoli como cirurgiã-geral, distribuía ordens e usufruía dos privilégios que o regime lhe proporcionava. Contrastando com a simplicidade do hospital, que enfrenta falta de equipamentos, a filha de Kadafi dispunha de uma sala climatizada, móveis de primeira, televisão com sinal de satélite, três telefones e até uma máquina Nexpresso. Em um de seus armários, um creme Dior Hydraction foi deixado para trás.

“Kadafi dizia para o mundo que sua filha tinha morrido em 1986, mas ela estava viva o tempo todo”, afirmou Lukman Kalfallah, cirurgião-geral de 29 anos, seu colega na universidade por sete anos. “Ela se formou no ano passado, e desde então passou a ter esse escritório, de onde na prática mandava no hospital, transferindo pessoas de quem não gostava e mandando em todos os setores.”

Segundo Saif Mussaf, anestesista de 29 anos, Hana mantinha uma vida fantasmagórica no hospital.

Não assinava documentos e não tinha carimbos nem identificações visíveis. Além disso, dirigia a palavra apenas a poucos “escolhidos”. “Nunca nos falamos nesse ano em que ela trabalhou aqui. E ninguém nunca tocava no assunto de sua morte, embora todos soubessem da história. Tínhamos medo de morrer”, explica.

Apesar de ter poucos amigos e de trabalhar acompanhada de seguranças, Hana tratava os médicos e os pacientes com cuidado e respeito. Como profissional, era limitada. “Não era muito boa, mas também não chegou a ter experiência, porque só trabalhou por um ano”, diz Rajab al-Ladsta, cirurgião sênior do hospital.

Seu paradeiro é desconhecido desde o meio-dia de domingo, quando abandonou o hospital vestida de uniformes verdes e acompanhada de dois seguranças. “Ela é uma boa pessoa. Mas nos últimos seis meses, estava muito agressiva por causa da situação. Nós tínhamos medo dela. E acho que ela, de nós”, entende Kalfallah.

A “morte” da pequena Hana foi anunciada ao mundo por Kadafi depois que o então presidente Ronald Reagan ordenou o bombardeio aéreo de Bab al-Azizia em 1986, como represália por um atentado a bomba contra uma discoteca em Berlim, que deixou 3 mortos e 230 feridos, incluindo 79 militares americanos. Kadafi passou a exibir a casa destruída para convidados ao seu complexo, como símbolo da “agressão” americana e de sua condição de sobrevivente.

Por outro lado, a suposta morte da Hana foi usada por Kadafi e seus simpatizantes como prova de que os Estados Unidos e seus aliados atacam civis inocentes. Com os bombardeios da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), iniciados em março com o objetivo declarado de proteger os civis líbios de ataques das forças de Kadafi, a história da morte de Hana voltou à tona, como demonstração de que são os ocidentais que matam civis. 

Em Benghazi, a capital rebelde, o Estado já havia ouvido, no início da rebelião, há seis meses, a versão de que Hana não havia morrido e trabalhava como médica em Trípoli. Parecia uma extravagante teoria conspirativa. Não era.

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