Chávez patrocina peça bolivariana em Teerã

Encenação do último dia de um general de Simón Bolívar é mais uma evidência da insólita sintonia entre a mensagem chavista e a islâmica

TEERÃ – Agonizante em Paris, o general Rafael Urdaneta, herói da guerra de independência contra Espanha, sonha com sua amada. De repente, Dolores entra no palco, ao som de um tango. Com vestido e chapéu brancos, ela dança para o general. A platéia que lota o Teatro da Universidade Azat solta um murmúrio de espanto. “É a primeira vez que vejo num teatro no Irã uma mulher dançando”, comenta uma espectadora de 26 anos.

A encenação do último dia da vida de Urdaneta, um fiel soldado do “libertador” Simón Bolívar, por estudantes iranianos de espanhol, com patrocínio da Embaixada da Venezuela em Teerã, é mais um marco da vertiginosa aproximação entre os governos de Hugo Chávez e de Mahmoud Ahmadinejad.

A mensagem venezuelana, mais até que o tango bailado por Dolores, é música para os ouvidos iranianos, neste momento de acirramento com os Estados Unidos, em razão de seu programa nuclear: “Vemos que o pensamento emancipador de Bolívar, sobre o qual está fundada a República Bolivariana da Venezuela, tinha uma visão futurista, porque até hoje existem povos do mundo submetidos a países de caráter imperial”, discursou o embaixador venezuelano em Teerã, Arturo Gallegos, antes da apresentação.

Bem adaptado aos costumes locais, Gallegos começou o discurso, traduzido para o farsi, com a expressão “em nome de Deus, o compassivo e miseriordioso”, como sempre fazem os políticos iranianos.

Para o iraniano médio, que tem pouca ou nenhuma informação sobre a América Latina, a solidariedade “bolivariana” estendida pela Venezuela é recebida como uma iniciativa de todo o subcontinente americano, contra o inimigo comum intervencionista do norte.

Em sua edição de segunda-feira, o diário econômico Pul (Dinheiro) estampou na sua primeira página uma foto de Fidel Castro, Hugo Chávez e Evo Morales, sob a manchete: “Triângulo econômico da América Latina contra os Estados Unidos.” Era a notícia de que os presidentes cubano, venezuelano e boliviano tinham firmado um “acordo de comércio popular alternativo”, pelo qual Cuba oferecia médicos e a Venezuela, petróleo barato, ao novo governo amigo da Bolívia.

“Agora somos três, mas creio que no futuro todos os países da América Latina vão se aliar a nós”, disse Fidel na assinatura do acordo, segundo o diário Pul. “É a união histórica de três revoluções”, festejou Morales, que parece já ter superado a relutância inicial entre seguir o modelo de Chávez ou do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Chávez, por sua vez, “prometeu que, sem ajuda de Washington, vai-se formar uma aliança econômica e política na América Latina”, noticiou o Pul.

Na mesma segunda-feira, Morales assinou o decreto nacionalizando o gás boliviano, que, assim como a nacionalização do petróleo iraniano em 1951, reduz as multinacionais instaladas no país a prestadoras de serviço, e não mais co-investidoras que partilham com o governo local o produto da exploração.

Uma filial iraniana da Massey Fergusson (de origem romena) já está fabricando tratores em Ciudad Bolívar, na Venezuela. Técnicos dos dois países trocam experiências na agricultura e na agroindústria. Os acordos de cooperação se multiplicam, com exceção de um setor. “O tema nuclear não nos interessa”, diz um funcionário venezuelano. “É problema demais. Não precisamos disso. Não temos pressa (em desenvolver nosso programa nuclear).”

Chávez é um político famoso no Irã, que, como todo país asiático, costuma cultivar pouca familiaridade com a América Latina. E se tornará mais conhecido ainda nas próximas semanas, quando deve visitar o Irã. A embaixada venezuelana não deixará que a visita passe em branco. Para a sua cobertura, ela pretende inaugurar um sofisticado equipamento de televisão, com sistema próprio de geração de imagens e som via satélite. A idéia é produzir telejornalismo em Teerã para alimentar a VTV, a emissora de TV estatal venezuelana, e a Telesur, um canal formado em parceria com outros países latino-americanos, incluindo o Brasil. A poderosa Jam-e-Jam, a TV estatal iraniana, também deverá participar da troca de material jornalístico.

É o nascimento de uma insólita sintonia entre as mensagens boliviariana e islâmica.

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