Linha dura frustra ‘Primavera de Teerã’

Campanha extravasou alegria e desejo de liberdade

TEERÃ – Maquiadas, com os cabelos à mostra, calças apertadas e bolsas de grife, as cinco garotas não paravam de cantar, dançar e dar gargalhadas. Três mulheres na casa dos 40 anos se viraram de cara feia e uma delas repreendeu: “Se vocês fizerem escândalo, não respeitarem as normas do Islã, os religiosos não vão votar no Moussavi.” As garotas continuaram sua algazarra.

O episódio, no comício de encerramento da campanha do candidato moderado Mir Hossein Moussavi, num estádio de futebol de Teerã, no dia 9, diz muito sobre a encruzilhada em que os iranianos se encontraram nessas eleições. Os partidários de Moussavi – ele próprio com credenciais impecáveis de conservador, primeiro-ministro entre 1981 e 1989, na fase mais radical da Revolução Islâmica – representavam um espectro ideológico amplo, unidos pela rejeição ao presidente Mahmud Ahmadinejad.

Para muitos de seus eleitores, sobretudo os mais jovens, Moussavi não era um candidato, com um passado e uma proposta. Era uma oportunidade de extravasar, de sair às ruas e expressar impunemente sua alegria e até mesmo algo impensável: sua sensualidade. “Isso que está acontecendo aqui é totalmente incomum”, repetiam muitos iranianos. A festa em que se transformou a campanha de Moussavi entrou para a história como “a Primavera de Teerã”.

Em setembro de 2007, no debate com estudantes da Universidade de Columbia, em Nova York, Ahmadinejad respondeu a uma pergunta sobre homossexualismo que se tornaria antológica: “No Irã não temos homossexuais, como no seu país.” A frase sintetiza a atitude intelectual de negação na qual os iranianos em geral e os conservadores em especial se resguardam. Eles tentam ignorar que no Irã se faz sexo fora do casamento, celebram-se festas com dança, bebidas e drogas, ouve-se música pop, há homossexuais e travestis, entre outras inúmeras práticas “antiislâmicas”.

David Fari, dono de uma distribuidora de medicamentos para tratamento de viciados em heroína e cocaína, conta que em média surgem dez clientes novos por dia, em busca de seus frascos com 50 comprimidos, vendidos a US$ 100. “São homens, mulheres, todo tipo de gente”, diz Fari. “Há um problema muito grande de drogas no Irã, como noutros lugares do mundo.”

Os iranianos são visivelmente vaidosos. É comum as mulheres e até os rapazes aparecerem com um esparadrapo no nariz, denunciando recente cirurgia plástica. Circula no país uma estatística segundo a qual as iranianas são as maiores consumidoras per capita de cosméticos do mundo.

Tanto rapazes quanto moças desfilam nas ruas com roupas da moda ocidental, no caso das mulheres mal adaptadas às normas do hejab, que as obriga a cobrir-se dos pés à cabeça. No lugar do chador, o pano que cobre o corpo todo, colocam sobre as blusas e calças apertadas sobretudos de brim com cinto e botões.

A artificialidade do uso do véu se nota nos aviões que fazem as rotas internacionais para o Irã. Antes mesmo de decolar, a maioria das mulheres retira o pano da cabeça, e só volta a colocá-lo quando aterrissa de volta no país. Pode-se argumentar que passageiras de vôos internacionais não representam a maioria da população. Mas mesmo em algumas regiões da zona rural, longe dos bassijis, a milícia que impõe os costumes nas ruas das grandes cidades, pode-se ver mulheres com os véus abaixados e roupas mais descontraídas.

Há três décadas, dois terços da população iraniana vivia no campo. A Revolução Islâmica representou o seu ideário religioso conservador, além do ódio ao regime do xá Reza Pahlevi. Trinta anos depois, resta apenas um terço na zona rural. Como resultado da própria Revolução, que levou o rádio, a televisão, a eletricidade e estradas ao campo, há uma nova geração menos conservadora. Para o clero que o sustenta, a função de Ahmadinejad, com seu estilo populista, é reaproximar o regime do povo.

Isso não quer dizer que os iranianos não sejam religiosos. Ao contrário. Apenas muitos deles não compartilham da severidade dos aiatolás, e aspiram ardentemente por mais liberdade. No seu livro Hidden Iran (Irã Escondido), Ray Takehy faz a seguinte distinção: os conservadores, a começar pelo aiatolá Ruhollah Khomeini, líder da Revolução de 1979, acreditam que a religião tenha de ser imposta contra a vontade do povo, que não a deseja espontaneamente; já os reformistas acham que o povo anseia por ela, e que sua imposição provoca a sua rejeição.

Com o anúncio do resultado das eleições presidenciais, de sexta para sábado, a energia que os jovens extravasavam nas ruas em forma de festa converteu-se em fúria. A esperança de mudança dentro do sistema parece ter dado lugar à sua rejeição por completo.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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