Os trólebus chegando, vistosos, silenciosos

Desde a primeira viagem, em 22 de abril de 1949, os ônibus elétricos conquistaram de imediato a população, mas hoje estão prestes a ser desativados

 Adhemar de Barros se preparou durante quatro dias para aquele momento, indo treinar na Praça General Polidoro, na Aclimação. No grande dia da inauguração do trólebus, 22 de abril de 1949, o interventor de São Paulo se atrapalhou no momento mais difícil. Ao subir a Rua Conselheiro Furtado, no centro, Adhemar deixou escapar a alavanca na curva, ali onde o ônibus elétrico mudava de rede.

O trólebus, cheio de autoridades dentro e de curiosos fora, parou. “Não vai mais?”, perguntou o interventor, entre irritado e aflito. Manoel Vieira, o dublê de motorista, desceu do ônibus, recolocou a alavanca e assumiu o volante até a Praça João Mendes. Estava inaugurada a primeira linha de trólebus de São Paulo.

Aqueles veículos vistosos, modernos e silenciosos conquistaram de imediato a população. Ainda em 1949, a frota de quatro Bulks ingleses teve de se dividir numa segunda linha para passar pela Rua Dona Veridiana, a pedido de influentes pais de alunos do Colégio Mackenzie. Surgia a Machado de Assis-Cardoso de Almeida, a mais antiga linha de trólebus ainda em circulação.

Mas o auge do requinte dos trólebus chegaria cinco anos mais tarde, quando a Companhia Municipal de Transportes Coletivos (CMTC) importou 50 veículos Werdinger, da Alemanha. “Eles vieram cheirando a tinta, novinhos em folha”, lembra Manoel Vieira, que então já ocupava o cargo de inspetor. “O prefeito Jânio Quadros os pôs para rodar nos bairros chiques, como os Jardins Europa e Paulistano.”

Em 1997, São Paulo chegou a ter 528 ônibus elétricos, servindo 23 linhas. Hoje, são 364 veículos, em 19 linhas. Mas, neste mês, 75, que fazem três linhas, serão desativados, por causa de obras nas Avenidas Faria Lima, Rebouças e Cidade Jardim. A tendência, segundo a SPTrans, é ir recolhendo os trólebus gradativamente, por causa do gasto de energia. Para o órgão, o fato de não poluírem já não é motivo para mantê-los, porque os ônibus movidos a gás também não poluem.

Manoel percorreu um longo caminho até se tornar o primeiro motorista de trólebus. Nascido em Canhotinho, Pernambuco, em 1922, veio para o interior de São Paulo em 37. Na época, os nordestinos e estrangeiros que chegavam tinham de ir trabalhar pelo menos quatro anos na roça. Depois de chegar a São Paulo, ele, os pais e 11 irmãos pegaram o trem às 8 horas na Estação Júlio Prestes e desembarcaram às 21 horas em Presidente Venceslau, no Pontal do Paranapanema, para trabalhar numa lavoura de café.

Insatisfeito com o trabalho na enxada, Manoel fugiu em dezembro de 1938 – três anos antes de completar seu prazo mínimo na roça – para a capital, aonde veio trabalhar como ajudante de caminhoneiro. “Quando vim, São Paulo não tinha gente”, lembra ele, mostrando o número de sua carteira de identidade da época: 700.330. “Emprego, tinha bastante.”

Em 1941, Manoel entrou como cobrador na Empresa Auto-Ônibus Sant’Ana, na zona norte. Colecionador de relíquias, guarda até hoje o holerite de fevereiro de 1945, quando seu salário bruto era de Cr$ 546. Na época, Manoel, que tinha feito até a segunda série primária, cursava o “madureza” (hoje supletivo), trabalhando de dia e estudando à noite.

Para se tornar motorista, fez curso de duas semanas – 4 horas de manhã e 4 de tarde – no Departamento de Serviços de Trânsito. As atividades do curso incluíam escrever repetidamente um texto, que Manoel lembra até hoje de cor:

“Cobradores e motoristas terão que se apresentar limpos, barbeados e uniformizados, tratar os passageiros com a maior educação possível, ensinar com muita cortesia as informações solicitadas pelos mesmos, varrer e limpar o ônibus no ponto final. Se esquecerem objetos, levar para a garagem, para fazer chegar às mãos do legítimo dono.”

Para manter os ônibus limpos, os motoristas aparavam a água da chuva em tambores, umedeciam panos e esfregavam os veículos. Na época, água encanada em São Paulo era privilégio de poucos bairros.

No seu tempo de cobrador e motorista, os homens eram proibidos de entrar no ônibus sem paletó e gravata. O uniforme dos funcionários era um terno de brim azul. Manoel conserva até hoje o seu quepe, com uma chapa que diz: “CMTC 130 – Inspetor”. Quando lhe entregaram a chapa, em 1947, deixou uma caução de Cr$ 20. Ao se aposentar, em 1974, quiseram que devolvesse a chapa, mediante o resgate da caução. “Eu não quero o dinheiro”, recusou Manoel. E ficou com sua chapa, uma das várias relíquias de seu ofício, que exibe com indisfarçável orgulho.

A vida de Manoel e de sua família gravita em torno dos ônibus. Seu filho foi funcionário da CMTC entre 1978 e 89, ficou mais dez anos em viações privadas, e hoje trabalha por conta própria com frete de ônibus. O avô da mulher de Manoel Filho era motorista do ônibus em que Manoel, o pai, trabalhou pela primeira vez como cobrador. O sogro de Manoel Filho foi cobrador de Manoel, e chefe do genro na CMTC. E o neto de Manoel, Mateus, de 6 anos, é louco por ônibus.

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